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Fracasso da Butanvac, promessa nacional contra a Covid, deixa lições para futuras vacinas

Depois de três anos de testes, deixaram um gosto amargo os resultados que decretaram o fim do desenvolvimento da Butanvac, vacina que começou a ser estudada em 2021 e que era a grande promessa do Instituto Butantan para que o país tivesse autossuficiência na produção de vacinas contra a Covid. O emaranhado entre ciência e política, além de alguns acidentes de percurso —uns evitáveis; outros, não— contribuíram para o desfecho.

Propagandeada inicialmente pelo Governo de São Paulo como solução 100% nacional para a pandemia, a grande vantagem o imunizante seria o modelo de produção, à base de ovos embrionados de galinha. O Butantan domina a tecnologia e a utiliza para a fabricação de vacinas contra a gripe. Assim, seria possível preparar rapidamente milhões de doses.

No entanto, o desenvolvimento da Butanvac seria, na verdade, com partículas virais da doença de Newcastle, que afeta especialmente aves. Essa tecnologia era de cientistas do Mount Sinai, em Nova York, e contava com o apoio da Path, que fomenta o desenvolvimento de soluções em saúde, e da Fundação Bill e Melinda Gates. O anúncio incomodou os criadores da vacina e, segundo apurou a reportagem, chegou a ameaçar o acordo.

As partículas do NDV (sigla em inglês para vírus da doença de Newcastle) carregam uma versão da proteína S (spike) do Sars-CoV-2, o coronavírus da Covid. É essa proteína que se liga a receptores de células humanas e permite que a infecção aconteça.

O consenso entre cientistas ouvidos pela reportagem é que a ideia inicial de abraçar o NDV e desenvolver a vacina era boa também por outros motivos: a partícula viral era segura, já que não causaria doença em humanos, e não seria tão difícil atualizá-la para combater novas variantes (no caso das vacinas de mRNA, como a da Pfizer, contudo, esse processo de atualização é ainda mais simples). Isso sem falar na ausência de pagamento de royalties, o que a deixaria ainda mais barata —R$ 10 por dose, menos de um sexto do custo das alternativas, de acordo com estimativas da época.

À época do anúncio, março de 2021, a vacinação no Brasil acabara de começar e era feita com a Coronavac (Sinovac) e com a vacina do consórcio Oxford-AstraZeneca, incluindo versões nacionais, envasadas, respectivamente, pelo próprio Butantan e pela Fiocruz em Bio-Manguinhos. O primeiro lote da Comirnaty (Pfizer), depois de uma negociação truncada com o governo federal, só chegaria ao país no mês seguinte.

Dada a dependência externa para o abastecimento, seja com o IFA (insumo farmacêutico ativo) ou com as doses de vacinas já prontas para aplicação, a possibilidade de autossuficiência era vista como estratégica e como trunfo político para o Butantan e para o então governador João Doria. Doria, durante o anúncio do início dos estudos, até exibiu a embalagem na qual a Butanvac seria distribuída.

Mas a natureza e o desenvolvimento de vacinas não respeitam os prazos dos políticos. Segundo cientistas e pessoas que participaram do processo e que foram ouvidas pela reportagem, foi-se com muita sede ao pote. Além do anúncio que negligenciava a origem americana, foi dito que a vacina poderia ficar pronta no mesmo ano, ainda que houvesse etapas críticas de estudos clínicos adiante.

No combo dessa aposta, estava ainda a fabricação concomitante aos estudos clínicos de alguns milhões de potenciais doses do candidato a imunizante, para agilizar uma possível vacinação uma vez vencidas as etapas científicas e regulatórias.

Em agosto de 2024, após os resultados de fase 2, que apontaram que a vacina não tinha capacidade ao menos equivalente à Comirnaty de gerar anticorpos, os estudos foram interrompidos. Supondo que a quantidade de anticorpos fosse semelhante ou maior, ainda haveria uma fase 3, com milhares de voluntários, para avaliação de eficácia.

A demora de mais de três anos gerou questionamentos. "Foi prometido que naquele mesmo ano de 2021 ela já poderia ser utilizada em escala populacional, no máximo em 2022. Mas nem o estudo de fase 3 chegou a ser feito. Só aí seria pelo menos mais um ano. Infelizmente, a impressão que fica é que não houve o empenho necessário. Mesmo que o produto não tivesse futuro, possivelmente poderia se ter chegado a essa conclusão há bastante tempo", analisa Sérgio Nishioka, médico infectologista e epidemiologista que já atuou na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e atualmente é consultor da OMS (Organização Mundial da Saúde) e pesquisador na Fiocruz.

Além da Butanvac, vacinas criadas a partir da mesma plataforma foram testadas no Vietnã e na Tailândia. O México também trilhou caminho no mesmo sentido, mas de forma independente do consórcio inicial. Na Tailândia e no México, houve aprovação de uso emergencial como reforço das coirmãs da Butanvac, respectivamente batizadas de HPX-GPOVac e Patria.

Apesar de terem a mesma semente, por assim dizer, e serem produzidas a partir de ovos, as formulações finais podem ter diferenças, inclusive em parâmetros de potência e estabilidade —daí o fato de cada uma ser analisada independentemente, em seu país.

Outra possível fonte para o atraso da Butanvac, conforme a Folha apurou, teria sido a escolha do grupo de pesquisa para conduzir os ensaios clínicos. O estudo de fase 1 ficou a cargo do Hemocentro da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, instituição de origem de Dimas Covas, diretor do Butantan à época. O esperado era que o grupo coordenado por Esper Kallás, atual diretor do Instituto, tivesse essa primazia.

Em resposta a questionamentos da reportagem, o Instituto Butantan afirma que a escolha dos centros de pesquisa para condução dos estudos fase 1 e fase 2 foram de competência da administração anterior, de Covas, e que as escolhas levam em conta a capacidade em gerar os resultados com os protocolos clínicos propostos.

Uma questão estratégica era definir se o desenvolvimento inicial seria como esquema primário, para quem ainda não tivesse recebido nenhum imunizante, ou como dose de reforço. Com o passar do tempo, ficou evidente que tentar estabelecer um novo esquema primário, dado o avanço da vacinação, seria difícil. Então a jornada se converteu na busca por uma vacina de reforço (ou booster). Algum tempo também se perdeu nesse ínterim.

Segundo o Butantan, o estudo de fase 1 só teve início quando mais de 80% da população brasileira já tinha o esquema completo. Ainda assim, a vacinação de reforço seria fundamental para manter a proteção, principalmente em grupos de alto risco para doenças graves.

"Você ter feito, tentado e não dado certo não é nenhum demérito. Mas se você faz algo e vende logo no início como se fosse algo muito bom, criam-se esperanças, expectativas. É importante que se tome uma lição do que aconteceu, nós podemos precisar dela", diz Nishioka.

Por fim, pode-se dizer que a Butanvac sofreu também com as consequências do sucesso das vacinas de RNA, especialmente da Pfizer, sua algoz nos testes clínicos. Com um desenvolvimento excepcionalmente rápido, impulsionados por um programa bilionário do governo americano, o Warp Speed, os imunizantes à base de RNA se tornaram o padrão-ouro para a proteção contra a Covid-19 e suas formas graves, ostentando uma capacidade de rápida atualização contra novas variantes.

"A Butanvac foi uma aposta válida na época, mas, com a demora, ela chega como inferior à da Pfizer. Aí não faz mais sentido investir nesse desenvolvimento", diz Maurício Nogueira, virologista e professor da Faculdade de Medicina de Rio Preto. Ele explica que, assim como a Butanvac, outras vacinas acabaram ficando para trás nessa corrida mesmo após o lançamento, como a da Janssen e da AstraZeneca, que foram descontinuadas, embora tenham ajudado a salvar milhões de vidas.

"Logo ficou patente que as vacinas de RNA mensageiro tinham respostas imunes muito superiores, melhores até que as de vetor viral, como AstraZeneca e Janssen. As respostas imunes desencadeadas pelas vacinas inativadas eram as mais pobres. Inicialmente, funcionavam bem como proteção primária, mas, com as mutações do vírus, especialmente após a ômicron [identificada no final de 2021], a efetividade caiu drasticamente", diz Renato Kfouri, pediatra infectologista e vice-presidente da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações).

Para ele, o caminho do Brasil rumo a uma autossuficiência em vacinas ainda é longo. "A gente compra a vacina de HPV da MSD, com acordo de 10, 15 anos de transferência de tecnologia para o Butantan, e compra a vacina da catapora da GSK, com acordo de transferência para Bio-Manguinhos. Só que essa transferência de tecnologia tem demorado muito além do que a gente gostaria, por falta de investimento no nosso parque produtivo nacional. Mas esse é o caminho, ele precisa ser aperfeiçoado. Infelizmente, a única vacina para a qual a gente conseguiu completar 100% de transferência de tecnologia foi a vacina da gripe com o Butantan", diz

O Butantan afirma que está em busca de outras plataformas e produtos vacinais para a Covid. Um dos empreendimentos é uma fábrica de produção de vacinas com tecnologia de RNA mensageiro, prevista para 2027.

Além disso, o Instituto Butantan iniciou o desenvolvimento, dentro da própria instituição, de uma vacina contra a gripe aviária, tida como a maior ameaça de nova pandemia do momento, e já enviou para a Anvisa a solicitação para iniciar o estudo clínico fase 1/2.

Até a conclusão desta reportagem, o Butantan não soube informar o montante investido no desenvolvimento da Butanvac, mas estima-se que a cifra esteja na casa das dezenas de milhões de reais.

Há outros candidatos a imunizantes em desenvolvimento no Brasil, como a Multicovax, um spray nasal em estudos no Incor, com resultados favoráveis em ensaios pré-clínicos (em animais) e em desenvolvimento industrial com uma organização holandesa. Também está em andamento um candidato da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), SpiN-Tec-MCTI-UFMG (à base de proteína quimérica formada pela proteína S e a proteína N, do nucleocapsídio, porção mais interna e conservada do vírus), em fase de estudos clínicos.

FOLHA SP




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